terça-feira, 23 de setembro de 2008

Os Brasis na História


Darcy Ribeiro

Depois de compor toda uma vasta teoria da história, que concluo com este livro, devo confessar que as grandes seqüências históricas, únicas e irrepetíveis, em essência são inexplicáveis.
O que alcançamos são algumas generalizações válidas que lançamos aqui e ali, iluminando passagens. É, porém, irresistível, como aventura intelectual, a procura dessas generalizações. É também indispensável, porque nenhum povo vive sem uma teoria de si mesmo. Se não tem uma antropologia que a proveja, improvisa-a e difunde-a no folclore.
A história, na verdade das coisas, se passa nos quadros locais, como eventos que o povo recorda e a seu modo explica. É aí, dentro das linhas de crenças co-participadas, de vontades coletivas abruptamente eriçadas, que as coisas se dão. Essa é a razão por que, em lugar de um quadro geral da história brasileira, compus esses cenários regionais.
Uma copiosa documentação histórica mostra que, poucas décadas depois da invasão, já se havia formado no Brasil uma protocélula étnica neobrasileira diferenciada tanto da portuguesa como das indígenas. Essa etnia embrionária, multiplicada e difundida em vários núcleos - primeiro ao longo da costa atlântica, depois transladando-se para os sertões interiores ou subindo pelos afluentes dos grandes rios -, é que iria modelar a vida social e cultural das ilhas-Brasil. Cada uma delas singularizada pelo ajustamento às condições locais, tanto ecológicas quanto de tipos de produção, mas permanecendo sempre como um renovo genésico da mesma matriz.
Essas ilhas-Brasil operaram como núcleos aglutinadores e aculturadores dos novos contingentes apresados na terra, trazidos da África ou vindos de Portugal e de outras partes, dando uniformidade e continuidade ao processo de gestação étnica, cujo fruto é a unidade sociocultural básica de todos os brasileiros.
Acredito que se possa distinguir a existência dessa célula cultural neobrasileira, diferenciada e autônoma em seu processo de desenvolvimento, a partir de meados do século XVI; quando se erigiram os primeiros engenhos de açúcar, sendo ainda dominante o comércio de pau-de-tinta, e quando ainda se tratava de engajar o índio como escravo do setor agroexportador. Era a destinação e a obra dos mamelucos-brasilíndios, que já não sendo índios nem europeus, nem nada, estavam em busca de si mesmos, como um povo novo em sua forma ainda larvar.
Era gestada nas comunidades constituídas por índios desgarrados da aldeia para viver com os portugueses e seus mestiços - que começavam a multiplicar-se na costa pernambucana, baiana, carioca e paulista. Com base no compadrio, ainda no tempo das relações de escambo com índios que permaneciam em suas aldeias independentes.
Aqueles núcleos pioneiros evoluíram rapidamente para a condição de comunidades-feitorias quando passaram a integrar também indígenas capturados, estruturando-se em volta de um núcleo de mamelucos e funcionando como bases operacionais dos brancos que serviam de apoio aos navios, estabelecendo suas próprias relações de aliança ou de guerra com tribos vizinhas. Ainda que embebidos na cultura indígena, só falando a língua da terra e estruturados em bases semitribais, já eram regidos por princípios organizativos procedentes da Europa. Constituíam, assim, de fato, brotos mutantes do que viria a ser uma civilização urbana e letrada.
Dessas comunidades se projetaram os grupos constitutivos de todas as áreas socioculturais brasileiras, desde as velhas zonas açucareiras do litoral e os currais de gado do interior até os núcleos mineiros do centro do país, os extrativistas da Amazônia e os pastoris do extremo sul. Cobrindo milhares de quilômetros, essa expansão - por vezes lenta e dispersa como a pastoril, por vezes intensa e nucleada como a mineradora - foi multiplicando matrizes, basicamente uniformes, por todo o futuro território brasileiro. Apesar de tão insignificantes, de fato disseminaram-se como uma enfermidade, contaminando a indianidade circundante, desfazendo-as e refazendo-as como ilhas civilizatórias. Só muito depois começaram a comunicar-se regularmente umas com as outras, através dos imensos espaços desertos que as separavam.
Sobre aquele arquipélago, integrando societariamente essas ilhas, se estendiam três redes aglutinadoras: a identidade étnica, que já não sendo índia se fazia protobrasileira; a estrutura socioeconômica colonial de caráter mercantil, que as
vinculava umas com as outras através da navegação oceânica e com o Velho Mundo, como provedores de pau-de-tinta; uma nova tecnologia produtiva, que as ia tornando mais e mais complexas e dependentes de artigos importados. Sobre todas elas falava uma incipiente cultura erudita, principalmente religiosa, de padrão básico, que se ia difundindo. Tal como o índio Uirá, que saiu à procura de Deus, para identificar-se ante a divindade declara "eu sou de seu povo, o que come farinha", todos nós, brasileiros, podemos dizer o mesmo: "Nós somos o povo que come farinha de pau".
A identidade étnica dos brasileiros se explica tanto pela precocidade da constituição dessa matriz básica da nossa cultura tradicional, como por seu vigor e flexibilidade.
Essa última característica lhe permitirá, como herdeira de uma sabedoria adaptativa milenar, ainda dos índios, conformar-se, com ajustamentos locais, a todas as variações ecológicas regionais e sobreviver a todos os sucessivos ciclos produtivos, preservando sua unidade essencial. A partir daquelas protocélulas, através de um processo de adaptação e diferenciação que se estende por quatro séculos, surgem as variantes principais da cultura brasileira tradicional (ver conceitos de cultura rústica e cultura caipira em Melo e Souza 1964; de cultura camponesa e folk-culture em Redfield 1941 e 1963; de cultura cabocla em Willems 1947 e de cultura crioula em Gillin 1947 ).
Elas são representadas pela cultura crioula, que se desenvolveu nas comunidades da faixa de terras frescas e férteis do Nordeste, tendo como instituição coordenadora fundamental o engenho açucareiro. Pela cultura caipira, da população das áreas de ocupação dos mamelucos paulistas, constituída, primeiro, através das atividades de preia de índios para a venda, depois, da mineração de ouro e diamantes e, mais tarde, com as grandes fazendas de café e a industrialização. Pela cultura sertaneja, que se funde e difunde através dos currais de gado, desde o Nordeste árido até os cerrados do Centro-Oeste. Pela cultura cabocla das populações da Amazônia, engajadas na coleta de drogas da mata, principalmente nos seringais. Pela cultura gaúcha do pastoreio nas campinas do Sul e suas duas variantes, a matuta-açoriana (muito parecida com a caipira) e a gringo-caipira das áreas colonizadas por imigrantes, predominantemente alemães e italianos.
Em termos de formação econômico-social, se pode dizer que essas faces do Brasil rústico se plasmaram como produtos exógenos da expansão européia, que as fez surgir dentro de uma formação agrário-mercantil-escravista, bipartidas em implantes citadinos e contextos rurais mutuamente complementares, estratificadas em classes sociais antagônicas,
ainda que também funcionalmente integradas. Seu motor foi o processo civilizatório desencadeado pela Revolução Mercantil, que permitiu aos povos ibéricos expandir-se para o além-mar e criar a primeira economia de âmbito mundial.
O Brasil, como fruto desse processo, desenvolve-se como subproduto de um empreendimento exógeno de caráter agrário-mercantil que, reunindo e fundindo aqui as matrizes mais díspares, dá nascimento a uma configuração étnica de povo novo e o estrutura como uma dependência colonial-escravista da formação mercantil-salvacionista dos povos ibéricos.
Não se trata, como se vê, de um desdobramento autônomo, produzido a partir da etapa evolutiva em que viviam os indígenas (revolução agrícola) e do tipo de formação com que se estruturavam (aldeias agrícolas indiferenciadas, isto é, não estratificadas em classes). Trata-se, isto sim, da ruptura e transfiguração das mesmas, por via da atualização histórica promovida por uma macroetnia em expansão:a mercantil-salvacionista portuguesa (Ribeiro1968 ).
É simplesmente espantoso que esses núcleos tão iguais e tão diferentes se tenham mantido aglutinados numa só nação. Durante o período colonial, cada um deles teve relação direta com a metrópole e o "natural" é que, como ocorreu na América hispânica, tivessem alcançado a independência como comunidades autônomas. Mas a história é caprichosa, o "natural" não ocorreu. Ocorreu o extraordinário, nos fizemos um povo-nação, englobando todas aquelas províncias ecológicas numa só entidade cívica e política.